Crónica da Ultra Maratona Atlântica (UMA ou Raid, para os mais antigos).

 

Uma prova que nos testa a resistência física e mental até ao limite dos impossíveis, é do que se trata a UMA.


Preparação e Mentalização


Este ano decidi à última hora inscrever-me para esta prova. Sempre disse que é uma autêntica loucura, insana mesmo, mas um dia teria de a fazer.

Depois de uma época longa, com alguns sucessos e, também, com algumas pedrinhas no sapato (alô, Sevilha???), senti-me com força para atacar as areias entre Melides e Tróia. Não sem antes ter consultado por várias vezes as informações meteorológicas (essencialmente temperaturas e marés). O vento contra seria o único óbice, encarado por mim como um mal menor (pior seria o muito calor e/ou piso mole). Depois de ter visto as péssimas condições de piso em que os atletas fizeram a prova de 2010, não arrisquei. Deixei mesmo para o último dia… não sem antes ter feito alguns treinos longos, que me deram a confiança mínima suficiente para enfrentar a distância.


Dia da prova


Acorda fresco e húmido, com vento moderado, o grande dia, que começa bem cedo (às 4h30). Encontro caras bem conhecidas, no Centro-Sul, e lá seguimos para Setúbal, onde apanhamos o barco para Tróia. Aí, espera-nos o autocarro que nos vai levar para o “local do crime”: Praia de Melides.

Cumpridos os formalismos habituais destes eventos (levantamento do dorsal-peitoral, chip, etc.), seguem-se outros menos rotineiros (protector solar, preparar abastecimentos líquidos e sólidos, etc).

Com a hora da partida cada vez mais próxima, aumenta um pouco a ansiedade, sempre controlada. Às 9h00 é dado um “briefing” geral por parte da organização, explicando as regras da prova, e dez minutos mais tarde (9h10) a “buzina” de partida é finalmente ouvida pelos quase 300 atletas presentes.


A Prova


Como que um descarregar de adrenalina, são muitos os que partem logo em ritmo bastante “vivo” mas não era esse o meu plano de ataque.

Mais preocupado em gerir esforço do que em efectuar ritmos ao km, tento seguir um andamento mais confortável possível, de forma a adiar a inevitável quebra.

O tempo continuava meio nublado, algo fresco e o vento já soprava com alguma intensidade, mas ainda de forma moderada.

Os primeiros quilómetros são feitos em areia um pouco mole, tentando sempre fugir da rebentação e olhando sempre para a frente e para trás, tentando absorver aquela atmosfera fantástica de uma fila compacta de corredores pela praia fora…

O piso vai endurecendo à medida que os quilómetros vão passando e torna-se cada vez mais fácil correr. O único senão vai sendo um progressivo intensificar da velocidade do vento, sempre contra. Vou-me alimentando conforme um plano inicialmente traçado, (aos 10,20,30 e 37 kms), com bananas, gel, água e isotónico.

Passo por uma atleta, que aproveita a minha boleia (para se proteger do vento) e seguimos juntos durante um bom pedaço, até dizer-me que não consegue aguentar mais e fica para trás. Aproveito e aumento um pouco o ritmo, faço os meus quilómetros mais rápidos (5’27’’/km, para quem em estrada anda abaixo de 4’00’’/km!!!).

Passo pelo Valdemar (espectador atento e apoiante entusiástico), que me incentiva e dá força, diz-me que vou bem. Só não me lembro em que praia foi (Carvalhal???), também foram tantas… Mas é sempre motivador ver caras conhecidas, as primeiras praias estão quase desertas, só nas passagens das mais conhecidas se vêem alguns veraneantes a apoiar os atletas (cortesia da “nortada”).

À meia-maratona (21km) tenho 2h00m00 de prova, o que abria excelentes perspectivas para um tempo final bastante razoável. Mal sabia o que nos esperava alguns quilómetros adiante…

Continuo a evitar molhar os pés, o que vou conseguindo com sucesso, o piso está cada vez mais consistente, e sigo tranquilo até à praia da Comporta, 1º objectivo do dia. Apenas o vento ia estragando um pouco a festa, soprando cada vez mais forte (com rajadas) e trazendo um “perfume” pouco agradável das chaminés da celulose de Setúbal.

Mas chegar aos 28,5 km em relativamente boas condições físicas, seria uma pequena vitória, e assim aconteceu. Tempo ainda para cumprimentar mais um amigo e espectador atento (Francisco Monte), que me saudou efusivamente.

Mas este “comboio” já ia a descarrilar, devagarinho…

Tempo ainda de cometer uma grande asneira, que me poderia ter custado bem caro. Quando me questionam se queria água (no único reabastecimento da prova!!!), pensando que ainda tinha bastante na mochila, respondo negativamente. Avisam-me 2ª vez de que ainda faltava muito para correr, mas não, convencido estava que chegaria e sobraria. Aos 30 km, dei comigo sem água, após o último golo…que fazer agora? Só me apetecia bater em mim próprio ou obrigar-me a voltar para trás. Só o evitei porque ainda levava uma garrafa meia cheia de isotónico. Teria de ser suficiente até ao fim, pensei.

O piso arenoso estava agora a piorar de forma brutal (aliás, já desde os 27-28km), com défice de consistência, aumentando enormemente o esforço muscular dispendido. Era agora quase impossível correr a direito.

Resultado, cãibras nos músculos por cima dos joelhos, que me obrigam a parar por completo. Mas como foi possível tamanha mudança? Que traição enorme, destas areias atlânticas...

Começo a andar, a “deitar” contas à vida e a prever, com o ritmo de caminhada, de chegar já bem após as 5h00 de prova.

Confesso que nesta fase me lembrei de Sevilha, e admiti que não sou talhado para as grandes distâncias. Só nos treinos longos nada disto acontece. Estranho, no mínimo…

Vou insistindo no esforço, contando os kms que faltam de forma decrescente, para me motivar e vão passando por mim vários atletas que, apesar do ritmo lento, conseguiam ir correndo (inclusive o nosso amigo Prudêncio, no seu passo curtinho e certo). Tento correr um pouco (100 a 200 metros, no máximo) até que as dores se tornam quase insuportáveis, repito o processo várias vezes, dou pancadas nos músculos para ver se reagiam até que paro para dar assistência a um atleta prostrado na areia. Pergunto-lhe o que tinha, sofria do mesmo mal que eu (malfadadas cãibras) mas ficou com a perna totalmente bloqueada. Quando estou a ajudá-lo, vem uma onda que me encharca por completo os ténis (que estupidez a minha, tinha conseguido sempre evitar a água, até então). Completamente frustrado, lembro-me de ter lido um conselho que um veterano destas andanças deixou, no fórum do Mundo da Corrida. Tiro os sapatos, conservo as meias e meto-me dentro de água, até à cintura, com esperança que a água fresca me curasse daquele mal. Fico de “molho” alguns minutos e aconselho (ajudando-o) o outro atleta a fazer o mesmo. Parto, então, para o que restava da minha epopeia.

E aqui dá-se outra viragem na minha prova. O ritmo, esse, que se tinha degradado enormemente (médias de 9’30’’/km, durante 4 kms), melhora agora substancialmente pois já me sinto capaz de ir alternando períodos de corrida com os de marcha. Sigo descalço (mas com as peúgas calçadas), ténis na mão, apanho dois troféus (conchas muito bonitas) que aproveito para guardar e faço o último abastecimento sólido e líquido, com o pouco isotónico restante.

A dada altura, sucumbo à tentação de molhar a boca com água do mar, e de beber um pouco. Talvez o sal me ajudasse com as cãibras…que loucura.

Corro pela areia molhada, por dentro de água, mas corro. E finalmente vejo a distância passar mais depressa, é outra pequena vitória, pois já consigo efectuar 3 kms seguidos a correr, devagar mas a correr. A água do mar realiza um verdadeiro milagre.

É agora a minha vez de ultrapassar alguns atletas que passavam menos bem. Passo a praia de Soltróia (com muitos veraneantes), alterno corrida com marcha, tentando poupar-me para os dois últimos kms. Aqui havia bastante público, muitos espanhóis gritavam ânimo, ânimo…e duas barreiras que se revelaram quase intransponíveis (dois cabos que seguravam as bóias do mar, rente à areia!!!).

Com uma alegria colossal, do tamanho do mundo, vislumbro finalmente o pórtico da meta, amarelinho, bem lá ao fundo. Cresce-me uma felicidade enorme, como se tivesse nascido outra vez. Sorriso estampado na cara, um forte arrepio (de emoção) no corpo e esqueço-me das cãibras, das dores, da sede e do cansaço. Nada mais importa. A meta está ali, bem acessível, à espera. Ainda pouco antes de a cortar, passa por mim o atleta que tinha ajudado previamente. Pergunto-lhe como ia, fez-me sinal positivo, ainda bem. Uma grande comitiva de APP’s (e respectivas famílias), presente junto à meta, celebrou a minha chegada com aplausos retemperadores e gritos de apoio. Que bem souberam…

Um agradecimento especial, a todos eles, do fundo do meu coração.

Finalmente cortei a linha de chegada e saboreei o momento, com um misto de grande satisfação e de emoção. Tinha terminado a maior aventura da minha vida, a “Ultra-Maluqueira Atlântica”, como mais tarde a apelidei.

Hora de cumprimentar os meus companheiros de jornada e entranhar todas as sensações vividas. E foram muitas…


Conclusão


Um percurso de beleza incomparável, de dificuldade enorme, pertencente a outra dimensão do atletismo, onde ritmos ao km, médias, tempos finais e classificações, são pura e simplesmente cilindrados pelo objectivo fundamental: chegar à meta.

Parabéns à organização, que primou pela eficácia e omnipresença, pois mesmo nos locais mais desertos, lá andavam as moto-4 para a frente e para trás, com reforço substancial nos últimos kms (pudera, aí o cansaço dos atletas já era brutal). Nunca me senti sozinho, bem pelo contrário. Quilómetros bem marcados, com postos de controlo eficazes. Bom saco de brindes e ofertas, massagens, reforço líquido e sólido no final. Só não digo que é para repetir…